sexta-feira, 25 de abril de 2025

25/05/2025

Há histórias que nos atravessam, e esta foi uma delas.

Conheci um rapaz através da minha senhoria, que me mostrou uma publicação comovente sobre ele. Vivia na rua, em situação de grande fragilidade. Senti de imediato que queria ajudar. Mexeu comigo. Falei com associações, procurei contactos, tentei abrir-lhe portas.

Com o tempo, as coisas começaram a mudar para ele. Arranjou trabalho, encontrou um lugar para viver, e a nossa relação passou de apoio para amizade. Eu sentia orgulho por vê-lo dar a volta por cima. Estava tudo a correr bem.

Até que chegou o aniversário dele.

Planeámos ir ao Algarve, ficar em casa de uma amiga minha. Naquela semana eu estava exausto — o trabalho tinha-me consumido — mas mesmo assim não quis falhar com ele.

O ambiente começou a ficar estranho quando percebi que ele estava a conhecer melhor essa minha amiga. Ele perguntou-me o que achava. E eu, com a melhor das intenções, disse-lhe para ir com calma. Tinha acabado de sair da rua, de conseguir um emprego, e também tinha terminado recentemente uma relação à distância que durava há anos. Além disso, partilhei com ele — apenas por preocupação — que não achava a minha amiga muito estável emocionalmente, até porque há pouco tempo eu tinha sabido que se sentia atraída por uma mulher.

Quis proteger. Nunca julgar.

O que eu não esperava foi o que aconteceu nesse fim de semana.

Foi na sexta-feira que tudo começou.

Duas amigas vieram buscar-me a casa para seguirmos viagem. E foi logo ali, no meio de uma conversa aparentemente inocente, que uma delas se descaiu e disse, à frente da outra, que eles já namoravam. Fiquei em choque. Não disse nada no momento, mas por dentro senti aquela dor de quem é deixado de fora. Aquela sensação de “espera aí, mas por que razão ninguém me contou isto?”.

Mas o pior ainda estava para vir.

Assim que entrámos no carro percebi que ia ser uma viagem longa — e não só em quilómetros. Íamos pela estrada nacional, que já por si me deixa mais desconfortável, cheia de buracos, sem separador central, com curvas apertadas. E para piorar, iam em excesso de velocidade. Como se não bastasse, começaram a fumar ganzas dentro do carro. A música estava absurdamente alta, num estilo que não ajudava em nada a acalmar o ambiente.

Eu comecei a entrar em pânico.

Sentia o peito apertado, a respiração curta, o coração a disparar. Estava a tentar manter a compostura, mas por dentro estava a desmoronar. Só queria que a viagem acabasse. Só queria chegar inteiro ao Algarve.

Houve um momento em que o rapaz, talvez sem perceber o meu estado, disse que se fôssemos pela autoestrada eu teria ainda mais medo. Mas respondi que não era bem assim. A autoestrada tem separadores, tem várias vias, é mais segura, mais previsível. A estrada nacional, naquele ritmo, era tudo menos segura.

Foi uma viagem terrível. Não só pelo desconforto físico e emocional, mas por sentir que estava num espaço onde os meus limites não eram respeitados. Senti-me sozinho, mesmo rodeado de gente. Por sorte tinha um calmante de SOS. 

Durante a viagem, mantive-me em contacto com a minha amiga do Algarve. Ia-lhe contando tudo por mensagem: o desconforto, o ambiente no carro, a minha ansiedade. Ela foi compreensiva, preocupada, e eu só pensava em chegar e ter um lugar onde me pudesse sentir seguro.

Assim que pusemos os pés no Algarve, saí disparado do carro em direção à casa dela. Já não aguentava mais aquele ambiente. Não era birra, nem drama — era um limite emocional. Eu só queria respirar. Estar bem.

Mas mesmo depois de chegar, a sensação de desconforto não desapareceu.

Durante aqueles dias, o casalinho não se largava. Não me incomodava que estivessem juntos — isso era o menos — o problema era o isolamento. Sentia-me uma vela. Estávamos ali várias pessoas, todos a tentar tornar aquele fim de semana especial, todos a dar o nosso contributo. Mas ele parecia absorvido só naquela relação, como se mais ninguém estivesse ali. Inclusive no dia de anos dele, que era o motivo de estarmos todos juntos.

A minha amiga do Algarve tinha sido impecável em ceder a casa. Tinha gatos e pediu, com razão, que tivéssemos cuidado com as portas — para que os gatos não fugissem — e também que não se fumasse dentro de casa. O pedido do cigarro foi respeitado. Mas o das portas, não.

Era a primeira vez que ele estava naquela casa, a primeira vez que o trazia para dentro de casa desta minha amiga. Uma coisa é estar num espaço de alguém e fazer parte. Outra é estar e não respeitar. E todo o clima — entre a tensão silenciosa, os descuidos e a sensação de exclusão — só me fazia sentir pior.

Durante o dia, fomos até à praia. Um passeio que, em teoria, podia ter sido leve, bonito, até curativo depois de tudo o que eu já tinha sentido. Mas não foi.

Mais uma vez, lá estavam eles: sempre juntos, sempre colados. E nós, os restantes, lá atrás, quase como figurantes. Eu tentava aproveitar o mar, o sol, a brisa. Mas era difícil ignorar o desconforto de me sentir completamente à parte. A certa altura, já nem disfarçava o que sentia.

Cheguei a comentar — talvez de forma meio irónica, meio desabafo — que, se era para ser assim, então mais valia terem comemorado o aniversário sozinhos, só os dois. Disse-o sem maldade, mas com sinceridade. Porque era isso que parecia: que o resto do grupo estava ali a fazer número. E isso doeu.

Doeu porque eu tinha feito um esforço para estar ali. Porque me preocupei, porque tentei proteger, porque quis genuinamente ajudar. E no fim, era como se tudo isso tivesse sido descartado. Como se a minha presença já não fizesse diferença.

Voltámos para casa e continuámos com os preparativos para o jantar. Eu estava a ajudar, como sempre, a colocar a mesa, a tentar manter alguma normalidade. Mas mais uma vez, eles estavam colados um ao outro, alheios ao resto do grupo. Aquilo já não era justo. Não comigo, não com os outros que também estavam ali para celebrar.

Não me lembro exatamente como começou, mas de repente a minha amiga — agora namorada dele — começou a berrar comigo. Nunca me tinha falado assim antes. E eu, já com tudo atravessado, também me passei. Gritei de volta. Foi aí que deixei sair tudo. Tudo o que tinha guardado desde o início daquela viagem. A tristeza, a exclusão, o cansaço, a frustração por sentir que fui deixado de lado.

Depois disso, fui para o quarto. Precisava de me afastar. De respirar.

Mais tarde, saímos todos para uma esplanada de um bar. Eu já ia com um peso enorme no peito e só queria aliviar aquilo de alguma forma. Acabei por beber — não por gosto, mas quase como um escape. Queria que a dor abrandasse, queria que a minha língua ficasse mais solta para conseguir dizer tudo o que tinha engolido.

E foi isso que aconteceu. Bebi e disse. Disse à namorada dele tudo o que tinha guardado, tudo o que me estava atravessado. Não foi bonito. Não foi leve. Mas foi verdadeiro. Porque às vezes o que guardamos começa a gritar cá dentro.

No sábado, acordei tarde. Entre o álcool da noite anterior e o cansaço acumulado da semana, o corpo já não respondia. Passei parte do dia a dormir, a tentar recuperar um mínimo de paz.

E mesmo assim, ela ainda veio atirar-me à cara: “Se querias tanto passar tempo connosco, por que passaste o dia a dormir?”

Mal sabia ela o que aquele tempo tinha custado. O esforço que foi estar ali. E como me senti o tempo todo… invisível.

A verdade é que, depois de tudo, já não me lembro de muitos detalhes. Estava esgotado — emocionalmente, fisicamente, mentalmente.

Lembro-me apenas de uma coisa muito clara: no regresso a Lisboa, coloquei uma condição. Disse que, se não fosse outra pessoa a conduzir, preferia ir de autocarro. Não queria, de forma alguma, repetir a viagem da ida. Era uma questão de segurança, mas também de autocuidado.

Acabou por ser uma amiga — a [i], que tinha vindo comigo de Lisboa e que, curiosamente, foi também quem me contou logo no início do fim de semana sobre o casal — a conduzir na volta. O casal ficou lá atrás, e eu fui lá à frente com a [i]. Silencioso. A tentar digerir tudo.

E foi assim que deixámos a casa da [g], a amiga do Algarve, que nos recebeu com tanta generosidade, apesar de tudo o que se passou.

Essa viagem ensinou-me muito. Sobre mim. Sobre os outros. Sobre os limites entre ajudar e anular-se. Sobre como, às vezes, mesmo quando damos tudo com o coração, nem sempre isso é reconhecido — e está tudo bem. O importante é não nos perdermos a nós próprios no processo.

O tempo passou. E com o tempo, algumas feridas pareciam ter começado a sarar. Fiz as pazes com a [b], a namorada do [r]. Falámos, esclarecemos mágoas e tentámos recomeçar uma convivência minimamente saudável. Parecia que as coisas estavam, finalmente, a acalmar.

Mas hoje, neste 25 de Abril — dia que simboliza liberdade — o que recebi foi tudo menos isso.

Hoje recebi ameaças de morte do [r].

Mensagens diretas. A dizer que se eu fizesse alguma coisa contra a ex-namorada dele, que me matava. Que eu “desaparecia num bidão”. Palavras pesadas, agressivas, que não se dizem a ninguém — muito menos a alguém que, em tempos, só quis ajudar.

Mas para entender como chegámos aqui, é preciso voltar um pouco atrás.

Depois daquele fim de semana no Algarve e já passados vários meses, houve um episódio que agora parece pequeno, mas que marcou o recomeço de algo estranho. Estava com um amigo, o Gonçalo, e decidimos ir jantar ao McDonald's. Nada de especial. Mas ao chegar à entrada do restaurante, vi o [r].

Cumprimentei-o com naturalidade, sem rancor. Achei que não faria mal. Que um simples “olá” não magoava ninguém.

Fiz o meu pedido, sentei-me com o Gonçalo, e enquanto comíamos reparei, pela janela, que ele andava para a frente e para trás, inquieto, como se estivesse ansioso. Não dei demasiada importância na altura. Mais tarde, já em casa, mandei-lhe uma mensagem a dizer que tinha sido bom revê-lo.
Mais tarde, já em casa, ainda com aquele encontro na cabeça, decidi enviar-lhe uma mensagem. Foi um gesto simples: "Foi bom ver-te." Uma tentativa genuína de reatar alguma paz, ou pelo menos um convívio cordial.

Ao início, até respondeu com boa disposição, chamou-me "cavaleiro Amadeu", trocámos umas palavras sobre estarmos acordados tarde, sobre trabalhar à noite. Tudo parecia inofensivo. Mas rapidamente a conversa tomou um rumo estranho.

Sem grande aviso, começou a responder com ironias, a dizer que falar comigo era como "falar com uma parede", que eu só "discursava conversa fiada", e que esperava que eu compreendesse que ele me desprezava — tudo embrulhado num "abraço" e desejos de "Boa Páscoa". Uma mensagem fria, confusa, com uma agressividade escondida sob palavras educadas.

Ainda tentei perceber o que se passava, respondi com um simples “???” e mais tarde, num tom pacífico, voltei a perguntar: “Qual é a cena?”

Mas o que veio a seguir foram áudios — mensagens longas, confusas, com um tom cada vez mais agressivo e descontrolado. Ele parecia estar a descarregar algo que nem fazia muito sentido, mas que vinha carregado de mágoa, ressentimento e raiva mal digerida.

Aquela troca de mensagens, que para mim era apenas uma tentativa de reconexão, transformou-se no início de um ciclo de instabilidade

E foi assim que, depois de tudo, cheguei a este ponto.

Recebi uma mensagem que me gelou o sangue. Do [r].

"Tu tens problemas, vou-te pedir pff para nunca voltares a tentar entrar em contacto comigo, e se algum dia seja quando for fizeres algo de mal contra a [b]? Vais desaparecer num bidon. Tamos entendidos, CÁRÁLHO?!"

Li e reli. Primeiro em choque. Depois em incredulidade. E por fim, com um nó no estômago. Porque isto já não era uma simples zanga. Não era uma troca de palavras mais duras. Era uma ameaça de morte clara, explícita — com tudo o que isso carrega.

Uma coisa é uma mágoa mal resolvida. Outra, bem diferente, é ameaçar fazer alguém desaparecer. E fazê-lo com aquele tom, com aquele “emojisinho” no fim — como se fosse uma piada macabra.

A minha primeira reação foi perguntar-me: Como é que chegámos aqui?

Eu que só quis ajudar, que estive presente quando ele mais precisava, agora sou tratado como um inimigo mortal. E o mais irónico: a ameaça nem vem de algo que eu tenha feito, mas de algo que ele inventa na cabeça — um “se algum dia fizeres algo contra a [b]”... Como se eu fosse um perigo. 

O que veio depois dessa troca de mensagens foi ainda mais perturbador.

Recebi um áudio. Um daqueles que não se esquecem.

"Caramba. Tu tens inúmeros problemas de saúde, o autismo, seja o que for, mano.

Eu espero que tu estejas a compreender o que eu estou a dizer nesta mensagem, mano.

Se tu fizeres alguma coisa, algum dia, de mal contra a [b]…

Mano, tu vais receber uma visita do [r] da Scoda.

Mano, eu vou ser a última coisa que tu vais ver na tua vida.

Estamos entendidos? Se algum dia fizeres alguma coisa contra a [b], portanto afasta-te.

Vive a porca da tua vida, mano, e nunca tentes entrar em contacto comigo.

Estamos entendidos, CÁRÁLHO? E mano, eu estou-te a falar muito a sério, CÁRÁLHO."


É difícil descrever o que senti ao ouvir isto.

Foi mais do que um ataque verbal. Foi uma ameaça concreta, nomeando até alguém como se estivesse a planear algo. Chamou-me “doente”, insultou-me, desrespeitou a minha condição, a minha vida, a minha história. E tudo isso por algo que nem existiu — por um “se algum dia” que nunca faria sentido.

Não é justo. Nem humano.
E sobretudo: não é seguro.

Sem comentários: